dijous, 22 de novembre del 2007

Palavras desejadas, conceitos proibidos: o enigma multicultural *

Pel seu interès, faix ús del còpia i enganxa d'una pàgina trobada quan cercava coses del Gerd Baumann. Lamentablement no he trobat el nom de l'autor.



Há certas palavras que não desejamos pronunciar. Algumas nem sequer ousamos pronunciar. Mas há também palavras que ouvimos com demasiada frequência, esvaziadas já de qualquer sentido, ou então, paradoxalmente, plenas de vazio. E como dizia Miguel Vale de Almeida, um colega antropólogo, num recente Seminário sobre Educação que o CEAS/ISCTE promoveu recentemente, algumas palavras quando esvaziadas ou esgotadas de sentidos tendem a serem enchidas com ideologia. Pois justamente é o que se passa com palavras como lusofonia ou multiculturalidade. Da primeira, o preenchimento neo-colonialista a que tem sido condenada já não deixa muitas dúvidas, procedimento aliás movido por um vago projecto sebastianista de resgatar o Quinto Império de uma qualquer bruma luso-tropical contemporânea. Já em relação à segunda as hesitações e as "nuances" sucedem-se. Multiculturalidade é hoje mais do que um conceito, é um verdadeiro enigma.
Várias razões podem ser sinalizadas para esta enigmática posição de um conceito que antes de o ser foi apenas mais uma palavra. Recordemos o seu uso politicamente correcto no reconhecimento da diferença e do relativismo cultural que marcou a retórica mainstream na academia e na sociedade americana há alguns anos atrás, mas que pretendia apenas silenciar ou filtrar o ruído da pluralidade cultural e racial daquela sociedade de imigrantes, conflituando e em demanda de direitos e garantias cívicas elementares. A sociedade americana ficou então definitivamente associada à concepção de sociedade multicultural. Mas não tardou a expandir-se o conceito para o velho continente. Afinal, alguma vez tinha estado ausente? Não seria a Europa desde há séculos uma plataforma de circulação de fluxos transnacionais? Hoje a Europa das migrações faz claramente parte das rotas multiculturais. E Portugal começa a descobrir-se também nessa condição.
Um cenário particularmente candente desta "contaminação" multicultural é a educação, quer pelo que se tem ensaiado dizer sobre aquele conceito, quer pelo que ele representa no interior da Escola. Hoje os discursos de Estado, os sentidos de missão dos profissionais, as recomendações pedagógicas ou os alarmes dos movimentos associativos pilham e multiplicam sentidos para a palavra. Desdobram-nos em vertiginosas "nuances" (a interculturalidade, é talvez um dos melhores/piores exemplos) ou em hesitantes políticas de afirmação positiva da diferença (as "semanas da cachupa" como exemplo paradigmático). Critérios administrativos, slogans políticos, indicadores estatísticos, programas académicos, estão hoje banhados, diria mesmo, entranhados, de multiculturalidade. Poderíamos falar de uma certa multiculturofobia ou multiculturofilia, se as palavras existissem. Mas afinal que mascara este consenso instável e quase religioso?
Aqui chegamos ao coração do enigma. O conceito torna-se em palavra desejada. O conceito reifica-se. Porque ele próprio é uma armadilha conceptual que releva de um modo de pensar cultura de forma monolítica e "essencializada". As culturas, cada uma delas com a sua cultura, são hoje conceitos proibidos em qualquer fórum académico que tenha feito jus à crítica cultural das décadas finais do século passado. Uma vez mais o conceito que se preenche de demasiadas coisas torna-se acima de tudo ideológico. E cultura não escapa a essa regra. A questão que nos inquieta, ou pelo menos a alguns de nós, é, pois, a de saber o que é isso de "ter uma cultura" ou de viver numa sociedade que "tem uma cultura?" Mas a resposta a esta questão não se resolve com o plural – multiculturalidade. Nem com interfaces – interculturalidade. Resolve-se pela desconstrução paciente da essencialização do conceito. E aqui regressamos às difíceis questões iniciais de Gerd Baumann: O que é realmente uma "comunidade", e como a "cultura" se manifesta na vida dessa "comunidade"? Chegamos aos princípios explicativos que organizam os processos de produção de sentido cultural: representações, discursividade, retóricas que estruturam e são estruturadas por experiências particulares que fazemos desse fruto proibido que imaginamos ser a "nossa cultura".
Estados-Nação e Etnicidade são necessariamente respostas mas não são obviamente definitivas. Processos migratórios transnacionais fazem das sociedades contemporâneas lugares de fluxos, fronteiras e circulações, para recordar outro antropólogo indispensável, Ulf Hannerz. Mas não apenas de circulação de pessoas e de mercadorias, mas também de ideias. E entre essas, de projectos identitários (étnicos, culturais, religiosos, etc.) que se reformulam, recriam, reorganizam na relação com as sociedades de acolhimento ou com grupos dentro dessas. Ser ucraniano, cabo-verdiano ou cigano na escola pública em Portugal não coloca apenas questões de usos linguísticos, de nacionalidade ou de racismos institucionais, mas sobretudo de poder e de diferenciação cívica. Ser ucraniano não é definível. É apenas objectificável através de representações, de retóricas, e até de práticas reificadas. Mas sobretudo, enquanto problemática contemporânea, esta questão não deveria mais ser resolvida – nem pelos agentes educativos, nem pelos poderes instituídos, nem pela sociedade em geral -, como uma questão de multiculturalidade, ou seja de aceitação/integração da diferença cultural, mas sim de cidadania.
Recordo uma conversa com uma aluna minha de origem brasileira que me dizia que nunca como em Portugal repensou tantas vezes a sua condição de "brasileira", de pertencer a uma "comunidade", a um "Estado" – a sua identidade reformulou-se tantas vezes quantas as relações de alteridade que teve de experienciar.
Nesta tarefa de deslocação do paradigma cultural para o da cidadania a responsabilidade dos cientistas sociais é crucial, uma vez que se torna problemático sublinhar a pertença cultural como um dado irremediavelmente essencializado ou advogar uma certa consensualidade na convivência entre grupos de origens distintas evitando pensá-la em termos de relações de poder diferenciado no interior de uma mesma sociedade. Pensar-se ucraniano não é igual para um ucraniano imigrado, para um na terra natal, e sobretudo para vários entre si em cada um destes lugares.
O que quero dizer afinal é que na Escola, o Manuel cigano, o Yuri ucraniano ou a Jucilene cabo-verdiana – mesmo que filhos de imigrantes, mesmo que com direitos de nacionalidade conquistados palmo a palmo, mesmo que falantes de línguas que têm expressão escolar apenas como "curiosidades" – têm (ou deveriam ter) todos o direito de ser vistos não pela sua diferença cultural mas pela sua cidadania. E nisso são exactamente iguais ao João que é "português de coração e raça" como dizia a canção.

* Inspirado no livro de Gerd Baumann (1999) The Multicultural Riddle; N.York, Routledge

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